sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Visão de Clarice Lispector - por Carlos Drummond de Andrade

Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.

Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.

O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.

Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.


Carlos Drummond de Andrade

#ClariceDay
"...olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado a vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de sermos inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a isso consideramos a vitória nossa de cada dia..."


Clarice Lispector

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Saudades

Sinto saudades de tudo que marcou a minha vida.
Quando vejo retratos, quando sinto cheiros,
quando escuto uma voz, quando me lembro do passado,
eu sinto saudades...

Sinto saudades de amigos que nunca mais vi,
de pessoas com quem não mais falei ou cruzei...

Sinto saudades da minha infância,
do meu primeiro amor, do meu segundo, do terceiro,
do penúltimo e daqueles que ainda vou ter, se Deus quiser...

Sinto saudades do presente,
que não aproveitei de todo,
lembrando do passado
e apostando no futuro...

Sinto saudades do futuro,
que se idealizado,
provavelmente não será do jeito que eu penso que vai ser...

Sinto saudades de quem me deixou e de quem eu deixei!
De quem disse que viria
e nem apareceu;
de quem apareceu correndo,
sem me conhecer direito,
de quem nunca vou ter a oportunidade de conhecer.

Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi direito!

Daqueles que não tiveram
como me dizer adeus;
de gente que passou na calçada contrária da minha vida
e que só enxerguei de vislumbre!

Sinto saudades de coisas que tive
e de outras que não tive
mas quis muito ter!

Sinto saudades de coisas
que nem sei se existiram.

Sinto saudades de coisas sérias,
de coisas hilariantes,
de casos, de experiências...

Sinto saudades do cachorrinho que eu tive um dia
e que me amava fielmente, como só os cães são capazes de fazer!

Sinto saudades dos livros que li e que me fizeram viajar!

Sinto saudades dos discos que ouvi e que me fizeram sonhar,

Sinto saudades das coisas que vivi
e das que deixei passar,
sem curtir na totalidade.

Quantas vezes tenho vontade de encontrar não sei o que...
não sei onde...
para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem onde perdi...

Vejo o mundo girando e penso que poderia estar sentindo saudades
Em japonês, em russo,
em italiano, em inglês...
mas que minha saudade,
por eu ter nascido no Brasil,
só fala português, embora, lá no fundo, possa ser poliglota.

Aliás, dizem que costuma-se usar sempre a língua pátria,
espontaneamente quando
estamos desesperados...
para contar dinheiro... fazer amor...
declarar sentimentos fortes...
seja lá em que lugar do mundo estejamos.

Eu acredito que um simples
"I miss you"
ou seja lá
como possamos traduzir saudade em outra língua,
nunca terá a mesma força e significado da nossa palavrinha.

Talvez não exprima corretamente
a imensa falta
que sentimos de coisas
ou pessoas queridas.

E é por isso que eu tenho mais saudades...
Porque encontrei uma palavra
para usar todas as vezes
em que sinto este aperto no peito,
meio nostálgico, meio gostoso,
mas que funciona melhor
do que um sinal vital
quando se quer falar de vida
e de sentimentos.

Ela é a prova inequívoca
de que somos sensíveis!
De que amamos muito
o que tivemos
e lamentamos as coisas boas
que perdemos ao longo da nossa existência...


Clarice Lispector

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Sou uma filha da natureza:
quero pegar, sentir, tocar, ser.
E tudo isso já faz parte de um todo,
de um mistério.
Sou uma só... Sou um ser.
E deixo que você seja. Isso lhe assusta?
Creio que sim. Mas vale a pena.
Mesmo que doa. Dói só no começo


Clarice Lispector
Sigo a vida conforme o roteiro, sou quase normal por fora, pra ninguém desconfiar. Mas por dentro eu deliro e questiono. Não quero uma vida pequena, um amor pequeno, uma alegria que caiba dentro da bolsa. Eu quero mais que isso. Quero o que não vejo. Quero o que não entendo. Quero muito e quero sem fim. Não cresci pra viver mais ou menos, nasci com dois pares de asas, vou aonde eu me levar. Por isso, não me venha com surfícies nada raso me satisfaz. Eu quero é o meu mergulho. Entrar de roupa e tudo no infinito que é a vida.


Clarice Lispector
Cada pedaço de mim sabe o inferno que é ser sol em noites de chuva,
ser cor nos cinzas dos edifícios, ser luz na escuridão das manhãs.

Cada todo de ti sabe a delícia que é ser flor nas asas do vento,
ser cristal nos olhos das fadas, ser azul no fundo do mar.

Cada suspiro de nós sabe a angústia que é ser só um na multidão dos dias,
ser muito na pobreza da esquina, ser ninguém na roda da vida.


Clarice Lispector

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Estilo

  Como uma forma de depuração, eu sempre quis um dia escrever sem nem mesmo o meu estilo natural. Estilo, até próprio, é um obstáculo a ser ultrapassado. Eu não queria meu modo de dizer. Queria apenas dizer. Deus meu, eu mal queria dizer.
  E o que eu escrevesse seria o destino humano na sua pungência mortal. A pungência de se ser esplendor, miséria e morte. A humilhação e a podridão perdoadas porque fazem parte da carne fatal do homem e de seu modo errado na terra. O que eu escrevesse ia ser o prazer dentro da miséria. É a minha dívida de alegria a um mundo que não me é fácil.


Clarice Lispector

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dificuldade de expressão

A dificuldade de encontrar, para poder exprimir, aquilo que no entanto está ali, dá uma impressão de cegueira. É quando, então, se pede um café. Não é que o café ajude a encontrar a palavra mas representa uma ato histérico-libertador, isto é, um ato gratuito que liberta.


Clarice Lispector

Mas já que se há de escrever

Mas já que se há de escrever, que ao menos não esmaguem as palavras nas entrelinhas.


Clarice Lispector

Quem escreveu isto?

Andei mexendo em papéis antigos e encontrei uma folha onde estavam escritas, entre aspas, algumas linhas em inglês. O que significa que eu copiei as linhas de tão belas que as achei. No entanto não estava anotado o nome do escritor, o que é imperdoável. Vou tentar traduzir e não sei se a tradução conservará esse algo que me tocou tanto:
  "Então por um momento os dois se apagaram na doce escuridão tão profunda que eles eram mais escuros que a escuridão, por uns instantes ambos eram mais escuros que as negras árvores, e depois tão escuro que, quando ela tentou erguer os olhos até ele, só pôde ver as ondas selvagens do universo acima dos ombros dele, e então ela disse: 'Sim, acho que te amo.'"


Clarice Lispector

Saudade

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.


Clarice Lispector

Amor a ele

Através de meus graves erros - que um dia eu talvez os possa mencionar sem me vangloriar deles - é que cheguei a poder amar. Até esta glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente queda me leva ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. Com pedras ruins levanto o horror, e com horror eu amo. Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai do nada.


Clarice Lispector

Liberdade

Com uma amiga chegamos a um tal ponto de simplicidade ou liberdade que às vezes eu telefono e ela responde: não estou com vontade de falar. Então eu digo até logo e vou fazer outra coisa.


Clarice Lispector

O grito

  Sei que o que escrevo aqui não se pode chamar de crônica nem de coluna nem de artigo. Mas sei que hoje é um grito. Um grito! de cansaço. Estou cansada! é óbvio que o meu amor pelo mundo nunca me impediu guerras e mortes. Amar nunca impediu que por dentro eu chorasse lágrimas de sangue. Nem impediu separações mortais. Filhos dão muita alegria. Mas também tenho dores de parto todos os dias. O mundo falhou para mim, eu falhei para o mundo. Portanto não quero mais amar. O que me resta? Viver automaticamente até que a morte natural chegue. Mas sei que não posso viver automaticamente: preciso de amparo e é do amparo do amor.
  Eu tenho recebido amor. Duas pessoas adultas quiseram que eu fosse madrinha delas. Um afilhado de batismo eu tenho: é Cássio, filho que Maria Bonomi e de Antunes Filho. E eu me ofereci para ser madrinha suplente de uma jovem que quer o meu amor. Dela a seguinte carta, do Rio mesmo: "Sabe, ontem acordei colorida. Assim porque vi uma porção de coisas sempre vistas e nunca vistas, amei o movimento da vida, sabe como é, um dia que a gente tem olhos para ver. E foi tão bonito que te dei o meu dia. O presente é meio mixo para a gente linda-tão-linda que tu me destes (vou conversar com ela quando estiver sozinha) mas foi tão bonito e grande e claro. Hoje estou a mesma chata de sempre, que não telefonar e nem dizer que gosta da madrinha."
  O mais curioso é que as dias afilhadas adultas que tenho - uma inteiramente diferente da outra - o mais curioso é que eu é quem tenho sido ajudada por elas. O que será que lhes dei a ponto de me quererem como madrinha?
  Voltando ao meu cansaço, estou cansada de tanta gente me achar simpática. Quero os que me acham antipática porque com esses eu tenho afinidade: tenho profunda antipatia por mim.
  O que farei de mim? Quase nada. Não vou escrever mais livros. Porque se escrevesse diria minhas verdades tão duras que seriam difíceis de serem suportadas por mim e pelos outros. Há um limite de se ser. Já cheguei a esse limite.


Clarice Lispector

Sem aviso

Tanta coisa que eu não sabia. Nunca tinham me falado, por exemplo, deste sol duro das três horas. Também não me tinham avisado sobre este ritmo tão seco de viver, desta martelada de poeira. Que doeria, tinham-me vagamente avisado. Mas o que vem para a minha esperança do horizonte, ao chegar perto se revela abrindo asas de águia sobre mim, isso eu não sabia. Não sabia o que é ser sombreada por grandes asas abertas e ameaçadoras, um agudo bico de águia inclinado sobre mim e rindo. E quando nos álbuns de adolescentes eu respondia com orgulho que não acreditava no amor, era então que eu mais amava; isso eu tive que saber sozinha. Também não sabia no que dá mentir. Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser tão precavida; porque depois nunca mais a mentira descolou de mim.E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso - já atordoada eu sentia - isso era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta.


Clarice Lispector

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Um pedido

Não, é mais que um pedido. Eu estou implorando. Estou implorando que você não beba tanto. Alguma bebida sim, porque você precisa de sentir um amparo e, em vez de amparo humano, escolheu por pudor a bebida. Mas tenho medo do que me dizem de você. Que você está bebendo três vezes mais do que bebia. Eu imploro que você não encurte a vida. Viva. Viva. É difícil, é duro, mas viva. Eu também estou vivendo. Em nome do Deus no qual você profundamente crê, monge que você é, beba menos.
     Não tem sido fácil pra mim. Acredite.   


Clarice Lispector

Dar-se enfim

  O prazer é abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que se estava encarniçadamente prendendo. E de súbito o sobressalto: ah, abri as mãos e o coração, e não estou perdendo nada! E o susto: acorde, pois há o perigo do coração estar livre!
  Até que se percebe que nesse espraiar-se está o prazer muito perigoso de ser. Mas vez uma segurança estranha: sempre ter-se-á o que gastar. Não ter pois avareza com esse vazio pleno: gastá-lo.


Clarice Lispector

Mas há a vida

Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata.


Clarice Lispector

O presente

... amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se poder dar de si.


Clarice Lispector

A comunicação muda

O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros. Às vezes, quando duas pessoas estão juntas, apesar de falarem, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra é o sentimento de solidão.


Clarice Lispector

Desencontro

Eu te dou pão e preferes ouro. Eu te dou ouro mas tua fome legítima é de pão.


Clarice Lispector

Uma revolta

Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom-senso e medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa.


Clarice Lispector

Por não estarem distraídos

  Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso a levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles se admiravam estarem juntos!
  Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela que estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque eles não estavam mais bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que já eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.



Clarice Lispector