segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Saudades

Sinto saudades de tudo que marcou a minha vida.
Quando vejo retratos, quando sinto cheiros,
quando escuto uma voz, quando me lembro do passado,
eu sinto saudades...

Sinto saudades de amigos que nunca mais vi,
de pessoas com quem não mais falei ou cruzei...

Sinto saudades da minha infância,
do meu primeiro amor, do meu segundo, do terceiro,
do penúltimo e daqueles que ainda vou ter, se Deus quiser...

Sinto saudades do presente,
que não aproveitei de todo,
lembrando do passado
e apostando no futuro...

Sinto saudades do futuro,
que se idealizado,
provavelmente não será do jeito que eu penso que vai ser...

Sinto saudades de quem me deixou e de quem eu deixei!
De quem disse que viria
e nem apareceu;
de quem apareceu correndo,
sem me conhecer direito,
de quem nunca vou ter a oportunidade de conhecer.

Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi direito!

Daqueles que não tiveram
como me dizer adeus;
de gente que passou na calçada contrária da minha vida
e que só enxerguei de vislumbre!

Sinto saudades de coisas que tive
e de outras que não tive
mas quis muito ter!

Sinto saudades de coisas
que nem sei se existiram.

Sinto saudades de coisas sérias,
de coisas hilariantes,
de casos, de experiências...

Sinto saudades do cachorrinho que eu tive um dia
e que me amava fielmente, como só os cães são capazes de fazer!

Sinto saudades dos livros que li e que me fizeram viajar!

Sinto saudades dos discos que ouvi e que me fizeram sonhar,

Sinto saudades das coisas que vivi
e das que deixei passar,
sem curtir na totalidade.

Quantas vezes tenho vontade de encontrar não sei o que...
não sei onde...
para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem onde perdi...

Vejo o mundo girando e penso que poderia estar sentindo saudades
Em japonês, em russo,
em italiano, em inglês...
mas que minha saudade,
por eu ter nascido no Brasil,
só fala português, embora, lá no fundo, possa ser poliglota.

Aliás, dizem que costuma-se usar sempre a língua pátria,
espontaneamente quando
estamos desesperados...
para contar dinheiro... fazer amor...
declarar sentimentos fortes...
seja lá em que lugar do mundo estejamos.

Eu acredito que um simples
"I miss you"
ou seja lá
como possamos traduzir saudade em outra língua,
nunca terá a mesma força e significado da nossa palavrinha.

Talvez não exprima corretamente
a imensa falta
que sentimos de coisas
ou pessoas queridas.

E é por isso que eu tenho mais saudades...
Porque encontrei uma palavra
para usar todas as vezes
em que sinto este aperto no peito,
meio nostálgico, meio gostoso,
mas que funciona melhor
do que um sinal vital
quando se quer falar de vida
e de sentimentos.

Ela é a prova inequívoca
de que somos sensíveis!
De que amamos muito
o que tivemos
e lamentamos as coisas boas
que perdemos ao longo da nossa existência...


Clarice Lispector

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Sou uma filha da natureza:
quero pegar, sentir, tocar, ser.
E tudo isso já faz parte de um todo,
de um mistério.
Sou uma só... Sou um ser.
E deixo que você seja. Isso lhe assusta?
Creio que sim. Mas vale a pena.
Mesmo que doa. Dói só no começo


Clarice Lispector
Sigo a vida conforme o roteiro, sou quase normal por fora, pra ninguém desconfiar. Mas por dentro eu deliro e questiono. Não quero uma vida pequena, um amor pequeno, uma alegria que caiba dentro da bolsa. Eu quero mais que isso. Quero o que não vejo. Quero o que não entendo. Quero muito e quero sem fim. Não cresci pra viver mais ou menos, nasci com dois pares de asas, vou aonde eu me levar. Por isso, não me venha com surfícies nada raso me satisfaz. Eu quero é o meu mergulho. Entrar de roupa e tudo no infinito que é a vida.


Clarice Lispector
Cada pedaço de mim sabe o inferno que é ser sol em noites de chuva,
ser cor nos cinzas dos edifícios, ser luz na escuridão das manhãs.

Cada todo de ti sabe a delícia que é ser flor nas asas do vento,
ser cristal nos olhos das fadas, ser azul no fundo do mar.

Cada suspiro de nós sabe a angústia que é ser só um na multidão dos dias,
ser muito na pobreza da esquina, ser ninguém na roda da vida.


Clarice Lispector

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Estilo

  Como uma forma de depuração, eu sempre quis um dia escrever sem nem mesmo o meu estilo natural. Estilo, até próprio, é um obstáculo a ser ultrapassado. Eu não queria meu modo de dizer. Queria apenas dizer. Deus meu, eu mal queria dizer.
  E o que eu escrevesse seria o destino humano na sua pungência mortal. A pungência de se ser esplendor, miséria e morte. A humilhação e a podridão perdoadas porque fazem parte da carne fatal do homem e de seu modo errado na terra. O que eu escrevesse ia ser o prazer dentro da miséria. É a minha dívida de alegria a um mundo que não me é fácil.


Clarice Lispector

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dificuldade de expressão

A dificuldade de encontrar, para poder exprimir, aquilo que no entanto está ali, dá uma impressão de cegueira. É quando, então, se pede um café. Não é que o café ajude a encontrar a palavra mas representa uma ato histérico-libertador, isto é, um ato gratuito que liberta.


Clarice Lispector

Mas já que se há de escrever

Mas já que se há de escrever, que ao menos não esmaguem as palavras nas entrelinhas.


Clarice Lispector

Quem escreveu isto?

Andei mexendo em papéis antigos e encontrei uma folha onde estavam escritas, entre aspas, algumas linhas em inglês. O que significa que eu copiei as linhas de tão belas que as achei. No entanto não estava anotado o nome do escritor, o que é imperdoável. Vou tentar traduzir e não sei se a tradução conservará esse algo que me tocou tanto:
  "Então por um momento os dois se apagaram na doce escuridão tão profunda que eles eram mais escuros que a escuridão, por uns instantes ambos eram mais escuros que as negras árvores, e depois tão escuro que, quando ela tentou erguer os olhos até ele, só pôde ver as ondas selvagens do universo acima dos ombros dele, e então ela disse: 'Sim, acho que te amo.'"


Clarice Lispector

Saudade

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.


Clarice Lispector

Amor a ele

Através de meus graves erros - que um dia eu talvez os possa mencionar sem me vangloriar deles - é que cheguei a poder amar. Até esta glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente queda me leva ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. Com pedras ruins levanto o horror, e com horror eu amo. Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai do nada.


Clarice Lispector

Liberdade

Com uma amiga chegamos a um tal ponto de simplicidade ou liberdade que às vezes eu telefono e ela responde: não estou com vontade de falar. Então eu digo até logo e vou fazer outra coisa.


Clarice Lispector

O grito

  Sei que o que escrevo aqui não se pode chamar de crônica nem de coluna nem de artigo. Mas sei que hoje é um grito. Um grito! de cansaço. Estou cansada! é óbvio que o meu amor pelo mundo nunca me impediu guerras e mortes. Amar nunca impediu que por dentro eu chorasse lágrimas de sangue. Nem impediu separações mortais. Filhos dão muita alegria. Mas também tenho dores de parto todos os dias. O mundo falhou para mim, eu falhei para o mundo. Portanto não quero mais amar. O que me resta? Viver automaticamente até que a morte natural chegue. Mas sei que não posso viver automaticamente: preciso de amparo e é do amparo do amor.
  Eu tenho recebido amor. Duas pessoas adultas quiseram que eu fosse madrinha delas. Um afilhado de batismo eu tenho: é Cássio, filho que Maria Bonomi e de Antunes Filho. E eu me ofereci para ser madrinha suplente de uma jovem que quer o meu amor. Dela a seguinte carta, do Rio mesmo: "Sabe, ontem acordei colorida. Assim porque vi uma porção de coisas sempre vistas e nunca vistas, amei o movimento da vida, sabe como é, um dia que a gente tem olhos para ver. E foi tão bonito que te dei o meu dia. O presente é meio mixo para a gente linda-tão-linda que tu me destes (vou conversar com ela quando estiver sozinha) mas foi tão bonito e grande e claro. Hoje estou a mesma chata de sempre, que não telefonar e nem dizer que gosta da madrinha."
  O mais curioso é que as dias afilhadas adultas que tenho - uma inteiramente diferente da outra - o mais curioso é que eu é quem tenho sido ajudada por elas. O que será que lhes dei a ponto de me quererem como madrinha?
  Voltando ao meu cansaço, estou cansada de tanta gente me achar simpática. Quero os que me acham antipática porque com esses eu tenho afinidade: tenho profunda antipatia por mim.
  O que farei de mim? Quase nada. Não vou escrever mais livros. Porque se escrevesse diria minhas verdades tão duras que seriam difíceis de serem suportadas por mim e pelos outros. Há um limite de se ser. Já cheguei a esse limite.


Clarice Lispector

Sem aviso

Tanta coisa que eu não sabia. Nunca tinham me falado, por exemplo, deste sol duro das três horas. Também não me tinham avisado sobre este ritmo tão seco de viver, desta martelada de poeira. Que doeria, tinham-me vagamente avisado. Mas o que vem para a minha esperança do horizonte, ao chegar perto se revela abrindo asas de águia sobre mim, isso eu não sabia. Não sabia o que é ser sombreada por grandes asas abertas e ameaçadoras, um agudo bico de águia inclinado sobre mim e rindo. E quando nos álbuns de adolescentes eu respondia com orgulho que não acreditava no amor, era então que eu mais amava; isso eu tive que saber sozinha. Também não sabia no que dá mentir. Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser tão precavida; porque depois nunca mais a mentira descolou de mim.E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso - já atordoada eu sentia - isso era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta.


Clarice Lispector