terça-feira, 2 de novembro de 2010

O grito

  Sei que o que escrevo aqui não se pode chamar de crônica nem de coluna nem de artigo. Mas sei que hoje é um grito. Um grito! de cansaço. Estou cansada! é óbvio que o meu amor pelo mundo nunca me impediu guerras e mortes. Amar nunca impediu que por dentro eu chorasse lágrimas de sangue. Nem impediu separações mortais. Filhos dão muita alegria. Mas também tenho dores de parto todos os dias. O mundo falhou para mim, eu falhei para o mundo. Portanto não quero mais amar. O que me resta? Viver automaticamente até que a morte natural chegue. Mas sei que não posso viver automaticamente: preciso de amparo e é do amparo do amor.
  Eu tenho recebido amor. Duas pessoas adultas quiseram que eu fosse madrinha delas. Um afilhado de batismo eu tenho: é Cássio, filho que Maria Bonomi e de Antunes Filho. E eu me ofereci para ser madrinha suplente de uma jovem que quer o meu amor. Dela a seguinte carta, do Rio mesmo: "Sabe, ontem acordei colorida. Assim porque vi uma porção de coisas sempre vistas e nunca vistas, amei o movimento da vida, sabe como é, um dia que a gente tem olhos para ver. E foi tão bonito que te dei o meu dia. O presente é meio mixo para a gente linda-tão-linda que tu me destes (vou conversar com ela quando estiver sozinha) mas foi tão bonito e grande e claro. Hoje estou a mesma chata de sempre, que não telefonar e nem dizer que gosta da madrinha."
  O mais curioso é que as dias afilhadas adultas que tenho - uma inteiramente diferente da outra - o mais curioso é que eu é quem tenho sido ajudada por elas. O que será que lhes dei a ponto de me quererem como madrinha?
  Voltando ao meu cansaço, estou cansada de tanta gente me achar simpática. Quero os que me acham antipática porque com esses eu tenho afinidade: tenho profunda antipatia por mim.
  O que farei de mim? Quase nada. Não vou escrever mais livros. Porque se escrevesse diria minhas verdades tão duras que seriam difíceis de serem suportadas por mim e pelos outros. Há um limite de se ser. Já cheguei a esse limite.


Clarice Lispector

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